Marcas, para que te quero?
- Rosana Almeida
- 26 de ago. de 2023
- 3 min de leitura
Meus pais repetiam as informações dos médicos:
– Nada de grave. Uma simples mancha de nascença…

Nasci com uma marca vermelha e saliente no braço direito e por mais que os médicos tranquilizassem meus pais que não era nada de grave, uma simples mancha de nascença, parecia que não se convenciam. Quando a bebê que eu era passou a ganhar peso e usar vestidinhos e blusinhas com mangas curtas a mancha despertava a curiosidade das pessoas. Meus pais repetiam as informações dos médicos:
– Nada de grave. Uma simples mancha de nascença… – Parece doença ruim… – Diziam aqueles que por não saber ajudar mais atrapalhavam.
Estou falando dos anos de 1959 do século XX. Nesta época, o nome doença ruim era usado para câncer. Havia uma crença que certas palavras não se podiam dizer por temor que se concretizassem. Era o caso de morte, diabo, câncer. Quando alguém morria, falecia. E como se dava voltas para comunicar a triste notícia.
Então meus pais tomaram a decisão de eliminar a tal da mancha ou, na imaginação deles, eliminar o mal pela raiz. Procuraram novamente os médicos, talvez outros, que orientaram a extirpar a mancha com gelo seco. Isso mesmo. Deveriam queimar o braço da bebê.
Era no hospital Beneficência Portuguesa que acontecia a tortura. Cabe muito bem dizer aqui o nome da instituição cúmplice. Nem sei como pode se intitular Beneficência… Minha mãe me levava de ônibus e não foi uma única vez. Precisou acontecer muitas sessões para que a tal mancha inofensiva fosse extirpada.
Eu tinha apenas 6 meses e tenho lembranças visuais do trajeto. Era uma sequência de lojas, postos de gasolina, açougues, quitandas pelas quais passávamos e eu olhava aquela sequência. Sabia que já tinha passado por ali mas, eu negava que sabia onde estava indo. Quando reconhecia o hospital e não dava mais para negar, começava a chorar desesperada e escandalosamente. Dessa parte não tenho lembrança alguma, evidentemente – eu ficava em estado de choque! Minha mãe contava que os passageiros perguntavam o que ela estava fazendo comigo, tamanha era a súplica gritante.
Esse sacrifício, em todos os sentidos da palavra, resultou em deixar uma mancha pálida e lisa em meu braço direito mas, não foi só isso.
Wilfred Bion, um dos psicanalistas mais inteligentes do fim do século XIX até meados do século XX, escreveu um brilhante texto do qual o título é Tirar proveito de um mau negócio e creio que foi o que aconteceu comigo.
Muito antes da idade escolar (entre 4 e 5 anos) quando andava de carro com a minha mãe – nessa época ela já dirigia, passei a lhe fazer perguntas sobre o que diziam as placas. Eu queria identificar para onde estava sendo levada. Hoje sei que estava sublimando uma angústia. Minha mãe respondia, comecei a identificar as letras e aprendi a ler muito cedo. Eu queria saber por mim mesma onde eu estava sendo levada e não depender daquela que tinha sido outrora minha algoz.
Deixando o tal lucro de lado, o ganho que nem sempre é certo, vale à pena sujeitar uma criança tão pequena, na verdade um bebê a um sofrimento tão atroz só por causa da vaidade ou insegurança dos pais? Qual o papel dos médicos? Os que prescreveram o procedimento e aqueles que executaram o martírio? E quantos casos como o meu aconteceram e ainda acontecem hoje em dia?
Fica a pergunta: vale à pena?
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