top of page

A HORA DA INSÔNIA 5

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 3 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 2 de set. de 2020

Uma [leitura] rapidinha. Não vá dormir sem ela.


A hora da insônia 5

O Galo Gigante do vizinho já havia cantado uma vez e Ela não tinha acordado ainda. Ele esperava quase pacientemente. Olhava a sua amada dormir não entendendo a razão dela estar atrasada para aquele encontro no meio da noite. Ele observava o peito dela subindo e descendo num respirar calmo.

Estava vestindo uma camisola nova. Pelo menos Ele achava que era nova. Não lembrava de tê-la visto vestida com ela.....

Inspira... Expira...

Era azul marinho com poás brancos. Um pouco comportada, dando até uma impressão de não me toques.

Inspira... Expira...

Um ar quase familiar. Quase uma roupa que se veste para um artista pintar o retrato da dona.

Inspira... Expira....

Ele coloca a mão no ventre da companheira para sentir o ar entrando e saindo nas profundezas de seu corpo.

Inspira... Expira...

Os poás da camisola começaram a brincar de roda. Saltavam e brincavam de mana mula e esconde-esconde. E riam muito daquele rosto que não estava entendo nada. Suas pálpebras foram pesando, pesando.... Foi quando Ela sentiu a cabeça de seu amado pesar em seu ombro direito. Sentiu também sua testa morna se encaixar na sua nuca, próxima às raízes do cabelo. Abriu os olhos e delicadamente tirou a mão de seu amado de seu ventre. Precisava se levantar para fazer algo.

Como ainda não estava com atraso menstrual era importante fazer o teste com a primeira urina do dia. Estava muito preocupada desde que esquecera de tomar a pílula por um dia. Tinha dado trabalho receber o delivery da farmácia. Ele sempre fazia questão de receber todas as compras deixadas na escada do jardim de fora. Pegava todos os produtos com uma luva e limpava com álcool 70 que estocou desde o início da pandemia.

Ela não tinha conseguido se mostrar acordada ao seu companheiro. Estava sentindo uma tempestade de emoções difícil de ocultar. Ele certamente iria perceber que havia um algo a mais que não estava sendo dito. Estava se sentindo como uma jovem adolescente que havia feito algo errado. Sentindo-se muito culpada por ter falhado o anticoncepcional, estava com medo. Não se sentia pronta para ser mãe e também, um filho, era algo que deveria ser uma decisão do casal. Tinha medo também que seu companheiro ficasse muito assustado e em conflito.

Ao mesmo tempo seu coração batia muito forte. Havia em seu interior, ela conseguia identificar, uma emoção contrastante. Uma alegria imensa diante da possibilidade de ser mãe, de ter uma vida em seu ventre. Não conseguiu se conter e vestiu a camisola que comprou em uma loja de roupas para gestantes. Se sentia uma princesa. Uma principessa, como diria seu avô. Era tão linda, com aquela pala que poderia se expandir graças ao elástico de trás, nas costas. E a saia tinha muito pano. Linda e elegante para a gravidez inteira.

Enquanto pensava tudo isso, esperava os três minutos necessários, olhando para o cronômetro do celular. Já tinha se passado quatro minutos. O resultado era negativo. E então experimentou um misto surpreendente de emoções. Ao mesmo tempo que sentia um alívio enorme também sentia uma tristeza imensa, como se alguém muito importante tivesse morrido ou se ela tivesse fracassado em uma tarefa crucial. Já tinha lido a respeito das emoções contraditórias que acontecem no início de uma gravidez, mas nunca imaginou que fosse algo tão marcante, tão impactante.

Deixou o teste em cima da pia. Ali, bem à mostra para ser encontrado. Ela desejava que seu companheiro visse. Talvez quisesse chorar nos braços dele. Naquele momento só conseguia focar em seus sentimentos. A nuvem negra de lágrimas que se formava em seu cérebro eclipsava qualquer preocupação com os sentimentos do ex futuro papai. Ele haveria de ter que buscar forças no mais íntimo do seu ser para ajudá-la a suportar a tempestade de sentimentos que se formava dentro dela. Enxugou uma lágrima audaciosa que teimava em derramar.

Entrou no escuro do quarto e antes de se deitar tirou a linda camisola azul marinho de poás brancos como se tivesse arrancando um sonho das paredes internas de seu corpo ou como se buscasse, na golfada de ar gelado, um susto para suas células, uma anestesia para o calor das emoções. Sentou-se na beirada da cama e inspirou profundamente, soltando o ar bem devagar. Levantou as cobertas e entrou em baixo delas. A mão quente de seu companheiro voltou imediatamente ao lugar de onde ela a havia retirado. Seu ventre. Aquele ventre vazio de vida e de sonhos.

Ela se juntou a Ele daquele jeito que sempre fazia quando iam iniciar uma conversa sussurrada. Na verdade, era uma tentativa de comunicação por osmose. Ela queria que o ar quente da sua pele introduzisse a dor que sentia e mais, pedisse colo, um colo urgente, que a acalentasse como criança que levou um tombo e a queda machucou mais ao ego do que ao corpo.

Ele, ainda sonhando com os poás a rodarem, disse:

– Você estava tão bonita... eu gosto assim também, você sabe. Mas estava encantadora.

– Resolvi trocar o encanto. Deixa aquele para outra vez.

Tinha algo naquela entrelinha que Ele não compreendeu imediatamente, mas reconheceu que havia uma entrelinha a ser lida e entendida.

– Ok. Você pode decidir quando será a outra vez.

– Sério? Sozinha?

– E por que não?

– Acho melhor os dois decidirem juntos.

– Ok. Você é que manda.

De qualquer maneira era o que Ela queria ouvir, só não percebia o quanto estava introduzindo significados onde não existiam. Ou será que sim? Conversas malucas davam margem a males entendidos difíceis de se resolver, mesmo voltando a fita várias vezes.

O ombro direito dela, aquele que doía, insistiu em invadir o espaço alheio numa súplica de ser olhada de frente. Mas não conseguia olha-lo. Olhos cerrados segurando uma enxurrada de lágrimas. Ele a beijou na testa e foi descendo por sua face com minis beijos. Quando chegou aos seus lábios, não só teve uma afetuosa retribuição dos beijos introdutórios, mas também encontrou uma companheira carente. Percebeu isso na maneira que Ela tentava engolir Ele, de forma desesperadora. Naquele momento Ele só podia responder às carências dela de uma forma. Então fizeram amor.

Até o Galo Gigante do vizinho deixar de cantar anunciando o dia.

Ela adormeceu no final do ato e Ele se retirou da cama com muita delicadeza e se dirigiu ao banheiro. Não demorou muito quando voltou e parou para se encostar no batente da porta, parecendo que precisava de um amparo para o corpo. Não conseguia tirar os olhos daquela ampola. E foi assim que Ela o viu, em sua primeira cena, ao despertar.


CONTINUA...

Comments


Escreva-me algo. Deixe-me saber qual foi sua experiência aqui, no Gazeta Insônia.

Grata por se inscrever!

© 2023 by Train of Thoughts. Proudly created with Wix.com

bottom of page