A Hora da Insônia 15
- Rosana Almeida
- 25 de set. de 2020
- 7 min de leitura
Uma [leitura] rapidinha. Não vá dormir sem ela.
Naquela madrugada, três horas da matina, Ele acorda e percebe que a sua bem-amada já havia acordado antes dele e estava entretida com algo, que não era ele. Estava sentada na cama e fazendo algo... Ele disse:
– Boa noite amor, feliz madrugada... O que você está fazendo?
Ela estava trocando o bico da mamadeira da gatinha Holly, mas estava inquieta, como que irritada. O clima, aquele ar que paira entre dois corpos estava sensivelmente perturbado por uma emoção estranha para aquela hora tão convidativa aos dois. Ele insiste:
– O que está acontecendo?
– Nada meu bem, é só a Gatinha que está rasgando o bico da xuca que estou dando a ela...
Ele pensa em algo. Se descobre e levanta. Põe o robe, na granja as noites eram incrivelmente frias. Dá a volta na cama e vai sentar-se ao seu lado. Ela estava bem entretida com a filhote no colo e trocando o bico da mamadeira. No chão, estavam caídos alguns bicos, todos rasgados. Ele diz:
– Meu bem, não sabia que você queria uma boneca para brincar...
Ela, visivelmente contrariada e num tom ríspido, responde com uma pergunta:
– O que você está querendo dizer com isso?
– Amor, não estou querendo dizer, estou dizendo. E você entendeu, tanto que não gostou...
Ela insiste em dar a mamadeira à gatinha. Esta brinca com o bico e rasga mais um... Ele acrescenta:
– Querida, lembra do nosso acordo, antes de nos casarmos? Combinamos que quando um de nós dissesse algo que fosse ruim para o outro ouvir, iríamos nos lembrar que nos amamos e que uma verdade dita com amor não é para agredir. Lembra daquela frase?
– O amor sem a verdade é vazio. A verdade sem amor é cruel.
– Bion... não é mesmo? Gosto desse cara...
– Eu também.
– Queria te contar uma história. Foi uma sessão que tive com a minha analista, aquela análise que fiz, antes de nos casarmos...
Ele olha para a fresta quebrada da janela, parecia procurar uma tela para projetar suas lembranças ou aproveitar aquele espaço para escapar e viajar no tempo, para um exato momento no passado. Ela olha para o seu rosto, num perfil bonito e acompanha com o olhar o trajeto de voo dos olhos dele. Ele começa:
– Entrei na sala da analista e me deitei no divã. Disse a ela que estava ansioso para contar sobre uma conversa que tive com a minha mãe quando era menino. Devia ter 6 ou sete anos...
Então comecei...
Nós morávamos numa casa que tinha um quintal imenso, com muitas árvores frutíferas. Nós éramos: meu pai, minha mãe, meu irmão de um pouco mais de 8 anos – ele era um ano e meio mais velho que eu – minha irmãzinha que deveria ter uns seis meses e tinha a parte da minha família de quatro patas: um cão policial, Duke, que era do meu pai; a cadela Mel, uma vira-lata genuinamente brasileira. Ela já tinha tido uma cria e minha mãe a castrou. Castrou também o Duke para ele não ficar emprenhando as cachorras da vizinhança. Tinha a gata Pop e o gato Misto. Ele se chamava assim porque era tão misturado que chegava a ser esquisito. Era bonito de tão feio. A gata Pop tinha acabado de ter cria ou, já fazia um mês ou dois quando essa conversa aconteceu. O Misto também foi castrado e logo a Pop também seria. Nós também tivemos pássaros de gaiola. Um dia minha mãe pegou todas as gaiolas e levamos para um reserva, na Mata Atlântica. Era uma parte destinada a soltar pássaros que estavam acostumados a viver em confinamento. Depois disso nunca mais tivemos pássaros engaiolados. Eram só aqueles que vinham nos frutos e flores das árvores.
Perguntei à minha mãe se a gata Pop não gostava mais dos filhotes dela. Minha mãe perguntou por que eu estava achando aquilo. Respondi que a Pop não estava deixando os filhotes mamarem nela mais. Minha mãe pôs minha irmãzinha numa espécie de cercado que tinha no meio da sala, pegou um dos gatinhos e abriu a boquinha dele para eu ver. Ele já tinha muitos dentinhos. Ela disse que estavam machucando ela e era por isso que não deixava mais que mamassem. Disse que os dentinhos já estavam ali há algum tempo, mas a mudança para a ração de filhotes acontecia aos poucos. Agora já era o momento da mudança definitiva. Era a natureza pondo ordem nas coisas. A natureza, dentro dos animais, é como um grito que eles não podem deixar de ouvir.
Ela também me perguntou se era só por causa dos gatinhos que eu estava fazendo aquela pergunta. Disse que talvez eu estivesse curioso de saber porque ela estava dando a mamadeira para a irmãzinha. A real pergunta seria se ela não gostava mais da irmã e se ela tinha deixado de gostar dele depois que ele cresceu. Ela acrescentou que eu poderia estar achando que ela só gostava dos filhos enquanto eram muito bebezinhos.
– Nossa! Achei minha mãe tão esperta!
Ela disse então que os bebês, quando nascem, só conseguem sugar e é por isso que precisam ser alimentados ao seio. Tem mais algumas coisas também. Bastava dizer que filho e mãe ficam muitos próximos e ligados um ao outro quando o bebê pode mamar no seio da mãe e isso é muito bom para o bebê continuar vivo e forte. Mas às vezes acontece de não poderem, por muitos motivos diferentes. Eu disse a ela que o irmão do meu coleguinha da escola não pôde mamar na mãe dele porque ela ficou doente e estava precisando tomar um remédio e teve que parar de dar de mamar a ele. Ela ficou muito riste. Minha mãe disse que podem acontecer muitas coisas, mas se era a mãe que estava dando a mamadeira para o bebê já era uma grande coisa.
Perguntei à minha mãe se minha irmãzinha já estava com muitos dentes e se estava machucando ela, o que ela respondeu que ainda não, mas os dentes estavam a caminho e que a gengiva da neném já estava bem durinha e só às vezes ela mordia, mas esse não era o principal motivo dela estar começando com a mamadeira. Ela estava só começando.
Iria ainda por alguns meses dar de mamar ao seio, principalmente à noite e de manhã e durante o dia ela ia começar a experimentar novos alimentos. Seria uma mudança gradativa, queria dizer aos poucos. Novos alimentos seriam introduzidos e a antiga maneira de alimentar a minha irmã seria retirada. Minha mãe disse que é assim que a mãe introduz o filho no mundo dos adultos. São maneiras diferentes de se estar no mundo. O filho vai aprendendo isso devagar, sempre com a mãe ao lado dele, ajudando e fortalecendo ele e a relação dos dois. Ela me contou que parar de dar o seio ao filho é o “primeiro grande não” que o bebê recebe da vida e esse não tem que vir da mãe porque ela está o tempo todo ao lado do filho, é um aprendizado que precisa acontecer numa época em que a natureza do filho está dizendo para ele que na vida perdemos algumas coisas para ganharmos outras. E é na relação com o seio que o bebê aprende muita coisa sobre o mundo que vivemos. A vida é assim.
Tinha uma outra coisa que estava acontecendo e ela queria me contar e que também era um motivo dela parar de dar de mamar ao seio para minha irmãzinha. Ela estava com um outro neném crescendo dentro da barriga dela. Ainda ia demorar para nascer, mas ia dar tempo para fazer a mudança de alimentação da minha irmã bem devagar e com calma. Ela não queria que minha irmã pensasse que parou de dar de mamar a ela por causa do neném que ia chegar, ela iria entender que chegou o momento de perder esse lugar que é de um bebê bem pequenino e que ela já estava pronta para muitas coisas boas que acontecem quando pode se separar da mãe e que se separar da mãe não é perder a mãe. E todos os filhos têm o direito de ter uma relação de exclusividade com suas mães quando são muitos pequenos. Tinha sido assim comigo, com o meu irmão e com a minha irmãzinha e seria assim como novo bebê que ia chegar.
Perguntei se ela não ia castrar para não emprenhar mais...
Ambos riram...
Ela explicou que com humanos não é castrar. Era uma cirurgia que fazia e que tinha um nome difícil e que não era emprenhar e sim engravidar. Falou que quem ia decidir se ela ia parar de engravidar era ela e o pai, o casal decide juntos a esse respeito.
Quando terminei essa história tentei olhar para a minha analista e perguntei a ela se gostaria de dizer algo. Sabe o que ela respondeu?
– O que foi?
– Ela disse: O nosso tempo terminou.
Os dois riram muito!
Eu já estava acostumado com o enquadre, me sentei no divã, olhei para ela e insisti: mas você não pode dizer nada mesmo?
Ela olhou para mim e inclinou a orelha, quase tocando no ombro, daquele jeito que analistas fazem e que não sabemos se é sim ou não. Bem, dei um tapinha nos joelhos para as pernas acordarem, me levantei e fui em direção à porta. Quando já estava com a mão na maçaneta ela disse: Você teve uma boa mãe terapeuta...
Olhei de volta e ela tinha um sorriso nos olhos. Eu disse então: Até a próxima! E ela: Estarei aqui te aguardando...
Quando terminou a história olhou para a sua amada. Ela pôs a gatinha no chão, onde estava a ração úmida, amassou o pacote com os bicos e quando ergueu o corpo o surpreendeu com um beijo intenso na boca. Os dois se deitaram naquele lado da cama que era o dela.
A Gatinha Holly, ali, brincando com o novo alimento e de entrar e sair do prato. O Gato Tom, com sua cara de enfado e em seu pensamento felino se perguntando até quando aquela pirralha brincaria daquele jeito bobo.
E o casal, bem, os dois ficaram um longo tempo deitados num único lado da cama porque não precisavam de mais espaço para a história que estavam contando um ao outro.
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