A HORA DA INSÔNIA 9
- Rosana Almeida
- 24 de jul. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 18 de set. de 2020
Uma [leitura] rapidinha. Não vá dormir sem ela.
Era sábado, de manhã. Eles tinham encerrado a hora da insônia com um momento sexual amoroso que durou mais que um momento. Um tempo difícil de classificar, se era o de Chronos ou de Kairós. Foi um tempo Deles. Talvez Deles fosse um nome legal para chamar aqueles momentos que poderiam durar horas ou segundos. E como era sábado, Ela se permitiu dormir até um pouco mais tarde.
Enlevada pelos momentos que passaram juntos, voltou-se para o lado da cama em que Ele dormia, já pronta para dar uma esticadinha no sono da manhã com a cabeça apoiada no peito dele. Não era um travesseiro tão confortável como parecia em filmes ou fotos de estúdio, mas Ela gostava de ouvir o coração dele disparar quando fazia isso. Era como se fosse a primeira vez e essa emoção era muito boa para o casal.
Quando se voltou, sorrindo, teve a surpresa não só do lugar dele estar vazio como nem o seu travesseiro se encontrava ali, disponível para o Gato Tom. E, por falar nele, onde estaria Tom que também não estava dormindo o seu sétimo sono enroscado em suas pernas? E em nenhum canto da cama que parecia imensa de vazia.
Tentando espantar o sono dos cabelos que insistiam em cair nos olhos, sentou-se na cama e vestiu os chinelos. Dirigiu-se ao banheiro e estranhou que o robe dele não estava no mancebo do caminho. Voltou-se para a cama que estava estranha sem os dois travesseiros, nem o gato. Reparou que a caneca preferida dele, a da Liga da Justiça, também não estava no criado. Atraída como que por um imã, caminhou no corredor entre a cama e o armário que estava com a porta mal fechada. Abriu a porta e encontrou um armário vazio. Olhou na parte de cima e a mala dele, a que usava para as viagens a negócio também não estava ali.
Começou a vasculhar o quarto com o olhar. Viu que os livros da estante foram remexidos. Em seu criado, o dela, havia um espaço vazio. Era o livro Os Miseráveis, de Vitor Hugo que também não se encontrava ali. Sentiu as suas pernas falharem. Começou a ficar trêmula e por mais que quisesse sair do quarto e chamar por Ele, não tinha forças. Tudo estava muito estranho. Nunca havia se deparado com uma cena dessa, antes, em suas vidas em comum...
– Fui abandonada! Fui abandonada?.... Fui abandonada!
Ela não estava entendendo nada! A noite tinha sido maravilhosa. Sempre era muito bom com Ele, mas aquela noite tinha sido mais que especial. A conversa sobre os efeitos da pandemia e do isolamento social sobre ele e sobre os dois havia os aproximado. Tinha sido bom para ela percebê-lo enciumado dela, por mais que tentasse lidar com a situação de maneira racional, para não acrescentar mais nenhum elemento emocional na situação. Complicaria mais, mas, durante o momento de amor, ela disse a ele que tinha sido bom para ela saber que ele sentia ciúme dela. Ele gostou de ouvir. Mas, fui abandonada?!
– Minha mãe já tinha me dito que eu era uma pessoa difícil! E que, no parecer dela, ninguém conseguiria viver ao meu lado. Nossa, que crueldade dizer isso a uma filha, mas será que ela tinha razão? Será que ela estava percebendo algo que eu, em meus ímpetos de menina hippie, me negava admitir?
Ela queria sair, pela casa, chamando o seu nome, mas, suas pernas estavam geladas. O simples toque do assoalho em seus pés, já incomodavam. Lembrou outra vez de sua mãe, no dia do seu casamento. Ela não parecia feliz. Estranho para uma mãe de noiva. Por mais que ela tentasse pensar que seriam coisas dela, da mãe, o pensamento que de alguma forma ela tinha ficado devendo algo insistia. Ou será que a mãe estava adivinhando, prevendo algo. Uma infelicidade para a filha? Essas coisas de mãe que ninguém explica. Fui abandonada? ... Um ruído na porta interrompeu seu pensamento....
Quando Ela se virou, viu o marido, já do lado de dentro do quarto, fechando a porta para quebrar o vento intruso que ela se queixava tanto. Quando ele se volta, ela o vê naquele pijama de inverno de bebês que ainda não abandonaram as fraldas por baixo de seu avental de churrasco, que ele gostava tanto. O cabelo, com reflexos aloirados, que insistia em ficar despenteado e por causa daquele rosto de menino levado lembrava tanto o personagem Dennis, o Pimentinha. Ele se aproximou sorrindo e só dava para perceber porque ele sorria com os olhos. Ele estava de máscara. E na mão uma vassoura e um espanador...
– Bom dia, meu bem. Dormiu bem?
– Sim... – com uma voz que saia do fundo da garganta ou nem saía. – Você saiu? Por que está de máscara?
– Ontem você disse que eu ando desocupado e sabe que você tem razão? Decidi fazer uns servicinhos que insistimos em deixar para depois. O dia está lindo lá fora! Resolvi tirar as minhas roupas para tomar um ar, um sol e vou limpar o armário por dentro. A máscara é porque tem muita poeira guardada.
– Ah sim claro. Como não vi sua mala...
– (interrompendo, às vezes tinha essa mania) Nossa, a mala! Toda vez que vou arrumar a mala para viajar percebo como está precisando de uma arejada. Aí digo que quando voltar farei isso, sem falta, e quando volto falta ânimo e guardo a mala. Hoje vou limpar a minha parte do armário e segunda-feira limpo a sua parte, se o tempo continuar firme.
– Sim, é que o travesseiro e a caneca...
– Claro, meu bem, o travesseiro no sol, precisamos trocar os travesseiros, você não acha? A caneca, eu deveria trocá-la para lavar pelo menos cada dois dias, ou nem trocar. Gosto tanto da minha caneca, da liga da justiça!
– Meu bem, eu...
– Decidi que vou ler aquele livro, A mulher que escreveu a Bíblia do...
– Moacyr Scliar, muito bom...
– Isso mesmo. Você fala tanto nesse livro e eu nunca li. Vai ser bom poder conversar a respeito.
– Vai sim, claro. Então, você sabe que cheguei a pensar...
– Peguei Os Miseráveis do Vitor Hugo porque aquele lenço que você embrulhou está cheio de ácaros, precisando trocar, enquanto lavamos o xale que você escolheu para proteger o livro. Podíamos aproveitar esse tempo de isolamento e dar início ao projeto de lermos juntos Os Miseráveis. O que você acha da ideia?
– Ótima e o Tom?
– Ah, o Tom! Decidi que adotaremos uma fêmea para ele, castrada claro...
– Claro que sim...
– Levei o tom para ver algumas fotos de gatas que escolhi em sites de ONGs de adoção. O Tom é racista? Sabe que ele ficou vidrado numa angorá branca? Eu disse: seu cafajeste, escolhe uma siamesa, de pelo curto
Ela puxou a máscara dele para baixo e beijou longamente seus lábios. Quando se afastaram, apenas os lábios, disse:
– Pensei que você tinha ido embora.
Estatelado...
– Como assim?
– Pensei que você tinha me abandonado...
Olhos arregalados...
– Primeiro você compra e faz um teste de gravidez e não me diz nada e agora você pensa que eu te abandonei. Não estou entendendo?
– Acho que eu também não. Não adianta dizer, né, que o quarto estava totalmente vazio de você? Acho que fiquei com a história da minha amiga de rede que o marido dela fez isso, assim, sem mais. Deixou ela com duas crianças...
– Cafajeste!
– Sim! Esse sim, não o Tom...
– E você achou que eu seria capaz de fazer a mesma coisa? Não acredito que você pensou isso de mim
– Meu bem, eu não sei... fiquei lembrando de coisas que minha mãe falava de mim, que no dia do nosso casamento achei ela estranha...
– Querida, péra aí, você não pensou nada de mim não. Você pensou de você...
– É, acho que sim. Como se algo estivesse pré-determinado e finalmente estivesse acontecendo
– Lembra que combinamos, ontem, que iríamos procurar uma psicoterapeuta online para mim?
– Sim, claro que sim.
– Vamos procurar um ou uma para você também, ok?
– Sim. Eu concordo.
– E agora vou te levar para a cozinha para tomarmos o nosso desjejum. Na verdade, tenho uma surpresa para você. Também levantei cedo porque tinha que receber a encomenda. – Diz isso oferecendo o braço para ela se apoiar.
Quando descem e entram na cozinha, uma mesa simples, mas carinhosamente arrumada com uma toalha branca, tudo que eles gostavam para esse pequeno almoço, geleia, ricota, chá, um cesto de pães e um vaso de margaridas que pareciam frescas de recém colhidas e uma caixa, embrulhada em um papel também branco, com um bonito laço de fita vermelha. Quando ela desamarrou o laço e abriu a caixa um delicioso aroma tomou conta do ambiente. Ela sorriu e olhou para Ele, sem disfarçar a lágrima que insistiu em rolar e cheia de gratidão no olhar
– Bem-casados...
– É, outro dia você estava falando desses doces que tivemos em nosso casamento. Resolvi ligar para a doceira que fez e ela ficou muito feliz de ter uma encomenda nesses dias em que não podem acontecer casamentos.
– Bem-casados!!!
– Enquanto você se delicia com um deles, vou preparar o nosso chá. Vou preparar um chá calmante para você. – E se afastou na direção da chaleira elétrica.
Ela, com um bem-casados na mão e se deliciando com a visão do seu querido esposo, de costas, com aquele engraçado bolso fechado por botões, circundando o bumbum, parecendo uma criança que ainda não saiu das fraldas e sentindo o aroma da guloseima percebeu que não faltava mais nada para Ela ser feliz. Não. Estava faltando algo, sim! O Tom. Onde estaria o gato? Procurou com o olhar pela cozinha e se deparou com ele, olhar fixo na tela do notebook que transmitia um vídeo de uma gata angorá branca.
E pensou que Marri fosse um nome muito bom para a Gatinha...








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