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A HORA DA INSÔNIA DEZ

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 31 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Uma [leitura] rapidinha. Não vá dormir sem ela.


O vulcão tinha entrado em erupção, só que em vez de cuspir fogo e lava ele despejava em seus arredores, balas, doces, chocolates, algodão doce, maçãs do amor, muitas maçãs do amor. E as crianças corriam na direção daquela chuva de lava doce, de presentes deliciosos. Gritavam alegres e sorriam. Podiam escolher o que bem quisessem.

Entre as crianças havia alguns adultos. Muitos corriam e brincavam como elas. Pegavam os doces e comiam, se deliciando. Outros adultos, porém, tentavam encher seus bolsos e aventais, bolsas e sacolas com a maior quantidade que conseguiam numa luta desesperada para apanhar o máximo que pudessem. Era uma luta porque quanto mais pegavam, mais tinha para pegar e experimentavam um sentimento de não conseguirem se saciar. Esses adultos, quando abriam suas malas, sacos e bolsas, muitas bolhas de sabão coloridas e brilhantes saiam em direção ao céu. Também saiam das sacolas pássaros e borboletas em uma festa de asas alegres. Ao olharem para dentro do seu recipiente percebiam que muitos dos doces que haviam pegado não estavam mais ali, mas ainda assim restavam muitos e da preferência daquela pessoa, para mais que saciar a fome e a necessidade de delícias. E no fundo da mala, que fosse, havia um bilhete dizendo: Fulano (o nome da pessoa), Eu te amo. Ass. Deus.

Nessa hora, em que os bilhetes começaram a ser encontrados, as crianças voltavam correndo, alegres, todas com um bilhete nas mãos. Elas diziam: Mamãe, mamãe! Papai, papai! Deus sabe o meu nome! E Ele sabe qual é o doce que eu mais gosto! Os pais abraçavam seus filhos felizes, dizendo: É isso mesmo! Ele te conhece, sim!

Havia também um grupo de pessoas que ficava assistindo ao longe toda essa movimentação. Pareciam desacreditadas e até invejosas. Carentes de participar da alegria, mas simplesmente não podendo porque não se davam o direito. Mas podia-se perceber no olhar delas que gostariam muito de compartilhar da festa.

Ela estava entre as crianças pequenas, com um vestido rodado, branco e cheio de rendas que ficava armado como um modelo antigo, com mangas curtas e bufantes. Tinha um avental por cima do vestido, azul marinho de poás brancos e todo debruado de azul marinho. Ela estava linda, comendo uma maçã do amor e rodando o vestido. Na outra mão uma outra maçã do amor para o seu esposo que não sabia onde Ele estava. Procurava pelas redondezas e não conseguia encontra-lo e começou a ficar triste por isso.

Quando acordou, estava alisando a cama no lugar que o marido dormia e Ele não estava ali. Sentou-se, ainda sonada, percebendo que Ele estava sentado na beirada da cama de costas para Ela...

– Meu bem, aconteceu alguma coisa?

– Oi amor, eu não consigo parar de repassar todos os passos para prevenção do COVID. São tantos detalhes que nalgum a gente se distrai e pronto. Passou!

– Meu bem, nós repassamos três vezes ontem, antes de deitarmos. Agora você precisa relaxar e descansar. Isso também é importante para combater o stress.

– Se eu não tivesse combinado com a responsável pela ONG de adoção eu desmarcaria. Mas eles estão preparando a Gata Marri para que eu a busque amanhã. Tadinha, se eu não for ela vai pensar que desistimos dela e isso deve ser terrível para alguém a espera de um novo lar e uma nova família.

– Meu bem, eu acho que adiar um dia ou dois não irá te ajudar, muito pelo contrário. Irá ao encontro da sua fantasia, que você não pode enfrentar o problema e você pode.

– Você se incomoda de repassarmos mais uma vez todas as etapas para a minha saída segura?

– Ok, se isso te ajudar a se sentir melhor...

– Primeiro eu higienizei o carro inteiro por dentro com Lysoforme, teto e paredes e botões de contato.

– Ok.

– Segundo eu passei álcool 100 no painel e volante.

– E no câmbio...

– Meu bem. Nosso carro é automático, não tem câmbio.

– Humm, comando manual?!

– Sim, passei no comando manual. Depois de ter feito isso tirei os tapetes e lavei com água sanitária diluída na proporção de um copo de água sanitária para três copos de água. Sequei e recoloquei no lugar. Deixei um tênis lá dentro que não usei ele para sair na rua, desde que começou a pandemia. Também não vou sair do carro. Combinei com a moça que vou pegar a gatinha no sistema de drive thru. Portanto, forrei o banco do passageiro com um pano e um plástico grosso por cima, onde ela vai colocar a gaiola. Como é perto e eu não terei que pegar rodovia, vou deixar que ela venha no banco da frente. Quero aproveitar o trajeto da volta para a gente ir se conhecendo. Quando chegarmos, tiro a gata da gaiola, saio do carro e trago ela para você. Volto e tiro a gaiola do carro. Vou higienizar antes de guardar. É uma gaiola que paguei para trazer a bichana.

– Ok. Tem um detalhe que você está esquecendo.

– Meu bem, estou esquecendo muitos detalhes e é isso que está me apavorando.

– Mas tem um que é importante: a ca....

– Sim! A caneta! Estou levando minha própria caneta para assinar o documento de adoção responsável e para qualquer eventualidade já deixei álcool gel 70 no carro. Eu creio que levarei de trinta a 40 minutos, ida e volta.

Ela passa a massagear os ombros dele e a base da nuca. Ele estava realmente tenso. Ele diz:

– Querida, não imaginei que esse período de isolamento social ia me deixar desse jeito. Nunca pensei em sentir desejo de nunca mais sair de casa. É medo né? Uma neurose pós-pandemia?

– Sim, talvez poderemos chamar assim. Meu bem, agora deita aqui um pouco, você está precisando relaxar...

Ele se deita. Ela puxa a coberta e apoia a cabeça no peito dele. Ele estava frio e tenso.

– Querida, você se incomoda se voltarmos a dormir? Estou tenso. Algumas horas de sono irão me ajudar...

– Claro que sim! Quer dizer, não! Não me incomodo nada. Vamos dormir sim!

Ela se deita bem ao lado e fica de mão dada com Ele.

– Meu bem, eu preciso te dizer uma coisa: ESTOU APAVORADO!!!

– Preciso te dizer uma coisa também: eu também estou...

– Preciso te dizer uma outra coisa.

– Pois diga!

– A gata já tem nome, se chama Filomena.


Continua na próxima semana.

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