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A HORA DA INSÔNIA 6

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 10 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

Uma [leitura] rapidinha. Não vá dormir sem ela.


A HORA DA INSÔNIA 6

Quando Ela abriu os olhos, não conseguia ter noção de quanto tempo Ele estava encostado no batente da porta do banheiro, olhando para a ampola do teste de gravidez. Passava a impressão de estar se escorando no batente. Como se estivesse sem forças nas pernas para se sustentar. O gato Tom, sentado ao seu lado, o dela, olhando fixamente para o seu rosto, a fazia pensar que já estavam, há alguns minutos, naquele empasse, esperando que Ela acordasse.

– Oi querido. Tudo bem? – Ela disse.

– Sim. Acho que sim, quer dizer não! Eu não sei se estou bem.

– Senta aqui, na cama, para conversarmos.

– Não sei se tenho forças para dar um passo além de onde eu estou. Quanto tempo sua menstruação estava atrasada e você não me contou?

– Minha menstruação não está atrasada....

– E por que você fez um teste de gravidez?

– Esqueci de tomar a pílula um dia. Fiquei preocupada. Quis tirar a questão da minha área de influência.

– Como assim? Tirar a preocupação... e não me dizer nada?! ... Não combinamos de não repetir a história do pai ser o último a saber?

– Meu bem, você ia ser o primeiro a saber. Caso eu estivesse grávida.

– Amor! Você disse que estava preocupada porque esqueceu de tomar a pílula. Você não acha que já era motivo suficiente para me participar?

– Não.... Quer dizer sim! Desculpe...

– Estou me sentindo um idiota. Não me lembro de outra ocasião em que me senti assim....

– Amor, você não é um idiota. E nunca tive a intenção de trata-lo como tal...

– Ah! Lembrei!

– Lembrou o quê?

Ele começou a andar de um lado para o outro mostrando que tinha recuperado as forças nas pernas. Ela demorou um pouco o olhar nas pernas peludas dele...

– Sim! Eu me lembro exatamente como fiquei .... fiquei... indignado quando soube que uma verdade tão importante foi ocultada de mim durante um tempo... um longo tempo...

– Um longo tempo? Meu bem eu decidi logo investigar. Não fiquei adiando para saber nem escondi de você que havia feito o teste de gravidez. Deixei na pia para que você descobrisse. Não tive coragem de te dizer ontem mesmo porquê...

– Sim. Por que? Eu queria estar com você nesses três ou quatro minutos que você esperou para saber a resposta. Ficar ao seu lado. Segurar a tua mão.

– Eu estava me sentindo culpada por ter esquecido a pílula por um dia...

– Você sabe muito bem o que significa esquecer de tomar a pílula, não sabe?

– Sei sim. Você é muito sabido! Mas eu não sabia que tinha este outro lado presente. Eu achava que para mim estava claro que eu não queria ser mãe neste momento. Nesse momento de nós dois e nesse momento de pandemia.

– É... essa pandemia está com jeito que irá se estender por longo tempo ainda... mas, o que você quer dizer com momento de nós dois?

– Esse momento só nosso e até essa pandemia que faz com que fiquemos isolados, numa ilha de amor. Nós dois e o gato Tom.

– Nós dois, o gato Tom e o Galo Gigante do vizinho...

– É mesmo! Nem tinha lembrado.

– Percebe? Sempre tem algo mais. Nós não controlamos. E você acha que existe mesmo o momento perfeito para se ter um filho?

– Quando penso em como insisti para você fazer psicanálise... Como analisando, você me saiu melhor que a encomenda...

– Se você está em conflito sobre uma gravidez, temos que conversar a respeito. Nós dois.

– Eu não estou em conflito. Neste momento eu não quero engravidar.

– Querida, você esqueceu de tomar a pílula. Isso significa que você também quer engravidar. Quer e não quer.

– Grata por deixar a questão num paradoxo.

– Mas tem uma coisa que eu tenho certeza. Uma certeza única. Eu não quero que me ocultem a verdade, seja qual for ela.

– Combinado. Peço desculpas novamente. Eu prometo que isso não irá se repetir.

– Nem vamos ocultar a verdade dos nossos filhos. Nem por um minuto que seja. Não vamos trata-los como idiotas.

– Meu bem, por que será que estou com uma impressão que tem algo que não está sendo dito. Algo que se encontra nas entrelinhas da nossa conversa?

– Enquanto estava esperando você acordar fiquei tentando lembrar da ocasião em que eu tinha me sentido um idiota por ter participado, de alguma maneira, da ocultação da realidade. Eu estava com muita raiva, mas eu sabia que não era de você. Era uma repetição...

– Repetição? Como assim?

– Teve um dia, eu era um menino, que levantei cedo e fui ao banheiro. Foi quando olhei para baixo, na sala, e vi meus pais colocando os presentes em baixo da árvore de Natal e eles diziam que os presentes eram trazidos pelo papai noel num trenó puxado por renas. Eu queria muito conhecer as renas. Acho que foi por isso que levantei bem cedo aquele dia. Queria ver as renas... Quando vi que eram meus pais o casal noel, voltei para a cama, sentindo muita raiva. Raiva deles por terem contado uma mentira para mim e eles diziam que era para eu nunca mentir. E raiva de mim por nunca ter percebido antes. A verdade estava ali, no meu nariz, e eu não conseguia enxergar. Quando chegou a manhã, no desjejum, meus pais estavam tão felizes falando dos presentes que o papai noel tinha trazido para mim que entendi que eles precisavam daquilo. Eu não tive coragem de dizer que tinha visto eles arrumando os presentes na árvore de natal, logo cedo, quando levantei para ir ao banheiro. Esperei por mais dois natais até que eles me dissessem que eles eram o papai e a mamãe noel. Quando eles me contaram, fizeram com grandes rodeios, não sabiam como começar. Eu disse: Ok mãe, eu sei. E a conversa acabou por aí. Acho que eles só contaram porque já podiam viver sem essa história.

– Querido, nunca pensei em te provocar um momento catártico. Ajuda se te contar que ouvindo a sua história me lembrei que também vi minha mãe marcando pegadas de coelhos pela casa numa madrugada de páscoa. E de manhã, ela vinha chamar minha irmã e eu para procurarmos os ovos de chocolate. Você sabe que nem sei até quando aquela história durou e como foi que eles pararam de fazer isso. Eu contei para minha irmã e ela chorou, pobrezinha. Aí eu entendi que a fada do dente era também uma invenção. Mas eu nunca tinha entendido a razão de alguém comprar dentes. Ficava imaginando que horror seria um castelo cheio de dentes das crianças do mundo inteiro...

Os dois riram muito. Ela, enfim, conseguiu sair do apenas olhar aquelas pernas peludas e acariciou a panturrilha dele...

– Ok. Já abrimos e limpamos caminho para sermos pais saudáveis de filhos saudáveis. Que tal se esticarmos um pouco a manhã, afinal hoje é sábado.

– Certo. Só um momento. Já volto.

Ele saiu do quarto e desceu as escadas. Ela ficou esperando sem entender exatamente o que ele tinha ido buscar. Quando Ele voltou, carregava uma bandeja com um copo de água e o anticoncepcional, num pequeno pires de porcelana.

– O celular está avisando a hora. A responsabilidade também é minha. E se você quiser ter mais garantia, posso também usar camisinha. Por mim tudo bem.

Ela sorriu enquanto tomava a pílula com um gole d’água.

– Vou pensar. Por enquanto vamos ficar com os 99% de eficácia da pílula e deixar uma margem de erro de 1%, ok? É bom ter uma surpresa.

E o gato Tom percebeu que tinha perdido o lugar ao lado de sua dona. Ele sabia que aquele lugar para ele era sempre temporário. Brevemente temporário.

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