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RAPUNZEL ERA RUIVA E O PRÍNCIPE NÃO ERA ENCANTADO

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 3 de set. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 5 de dez. de 2020

Da série Sinopses de filmes inesquecíveis com beijos inesquecíveis.


Este filme inesquecível conta a história de uma menina que quando se comportava mal, e isso era quase sempre, sua mãe a colocava de castigo trancada no porão e ela ficava se imaginando uma princesa presa numa torre por uma rainha malvada. Então aparecia um cavaleiro a galope num cavalo branco e cores ao vento. Ela acenava e ele escalava a torre e a salvava. A mãe dessa menina também a chamava de ‘antena de vagabundo’. Se houvesse um vagabundo num raio de 100 km ela ficaria perdidamente atraída por ele. A menina fugiu com o “terceiro” vagabundo que conheceu. Tentou alguns empregos: garçonete, estacionar carros em lugares públicos, mas quando faltou dinheiro para pagar o aluguel e ela sentia vergonha de voltar para casa, entrou para a prostituição (esta história não é rara, mas é só uma história). O nome desta menina era Vivian Ward. Conta também a história de um menino cujo pai era muito rico e divorciou da mãe ‘por outra mulher’, deixando-a sem dinheiro. Após a separação ela morreu. O menino gastou uma fortuna em psicoterapia apenas para conseguir dizer que estava zangado com o pai (se é que foi isso mesmo poderia ter aproveitado melhor, mas cada um faz o que pode). Quando esse menino cresceu se tornou um empresário e passou a comprar empresas em dificuldades financeiras, dividi-las e vender as partes. Aprendeu que assim podia ter mais lucro do que construi-las. A “terceira” empresa que desmantelou e vendeu as partes foi a que o pai era o presidente. O terapeuta disse que ele estava curado e ele se tornou um magnata do jogo de lego ao contrário e ficou com uma fobia de alturas. O nome do menino era Edward Lewis. Vivian é Julia Robert e Edward é Richard Gere em Pretty Woman – Uma linda mulher para nós, aqui no Brasil. Um conto de fadas do século XX. Na época de seu lançamento, este filme foi festejado por muitos e condenado por outros por ser um conto de fadas contemporâneo. Na direção de Garry Miershall, o roteiro de J. F. Lawton é um primor. E tem, sim, todas as características de um conto de fadas, não só o final feliz. Creio que as pessoas que o celebraram intuíram exatamente isso, enquanto que aqueles que o condenaram, bem, ficaram com uma análise pobre que só agradou porque teve final feliz. Uma linda mulher é rico em sinais e conteúdos inconscientes e que talvez exatamente por isso seja tão amado quanto odiado. O roteirista usou do conto Rapunzel como fundo para a história. Para entendermos um pouco melhor a personagem Vivian / Rapunzel, vou me reportar a ele. Uma mulher estava grávida e ficou com desejo de comer ‘raponzo’ (nabo em italiano) que havia plantado no quintal da vizinha – uma malvada feiticeira. Importunou tanto o marido com seu desejo, dizendo que morreria caso não fosse satisfeito. O marido correu o risco e colheu os raponzos na horta da vizinha. Mas a primeira porção só incitou a mulher a exigir mais. Da segunda vez foi surpreendido pela dona da horta e obrigado a explicar a razão daquela invasão. Só saiu vivo e carregado de raponzos porque foi coagido a prometer a filha que nasceria para a perversa mulher, em troca da verdura. Assim que nasceu, a menina foi recolhida pela estranha madrasta que a batizou de Rapunzel. No filme, quando a jovem entra no carro e Edward pergunta o nome dela, ela responde: como você quer que eu me chame? Ela, assim como Rapunzel, uma criança abandonada e adotada, tinha dúvidas quanto a sua origem, as suas raízes. Acreditava poder vir a saber, sobre elas na fantasia do outro. Mais tarde, quando ela já foi contratada por Edward para passar a semana com ele, ela sugere que fiquem vegetando em frente à TV, assistindo a filmes antigos... Vegetando? Edward pergunta. É, feito brócolis. Ela responde. Seremos brócolis outro dia. Respondeu ele. A bruxa era muito apegada à menina e quando esta atingiu a idade de 12 anos e se tornou uma linda jovem foi colocada numa torre sem portas para que ninguém a visse. O único acesso aos aposentos de Rapunzel era por suas próprias tranças. Na história de Vivian o pai não aparece. O avô, uma figura substituta, introduz à menina um pouco da alma masculina, ensinando-a a dar nós de gravata perfeitos. Vivian procura o pai nos “vagabundos” e foge com o terceiro. O número três, muito frequente em contos de fadas, três vagabundos, terceiro vagabundo, terceira empresa, indica que o conflito abordado, aquele que o conto se propõe a ajudar a criança a resolver é o edípico. E porque na sua fantasia fugiu com o pai, roubou-o da mãe, não pôde voltar para casa quando faltou dinheiro para o aluguel. E entra para a prostituição... Freud, em seu trabalho A escolha do objeto amoroso, diz, numa intrincada construção, que alguns homens têm propensão a escolher mulheres que, eles sentem, vivem em perigo ou ainda por levarem uma vida “fácil” lhes despertam fantasias de serem traídos e causam-lhes uma experiência emocional poderosíssima, que é a de sentir ciúmes. Freud usou o termo cortesã, mas na nossa tradução devido ao desuso da palavra, ficou como amor à prostituta. Nesta construção Freud fala do desenvolvimento dos meninos, que entre as informações que eles recebiam quando eram iniciados no conhecimento sexual, estava a que há mulheres que ganham a vida “fazendo sexo”. Nas entrelinhas, ou nas linhas mesmo, lhes era comunicado que há uma diferença fundamental entre essas mulheres e as mulheres “para casar” e, consequentemente, as suas mães. Este tipo de informação ia ao encontro do desejo dos meninos que as suas mães não tivessem relações sexuais com seus pais. Ou como toda criança fantasia “só para terem bebês”. Bem, o interesse pelas prostitutas fica, assim, muito seguro, livre de culpa, pois estas ficam, de maneira enganosa, muito distantes do triângulo edípico, ficam sendo, no final das contas, a mãe negada. Posteriormente quando descobrem a verdade, que a mãe tem relação sexual com o pai e não só para gerar bebês, ficam chocados e fazem a equação inconsciente – elas são iguais – além de em sua indignação hostilizarem a mãe, classificando-a como puta. A prostituta torna-se então a mãe negada e hostilizada. Pronto, fica um prato cheio para serem eleitas objeto amoroso. Não esqueçam, tudo isso acontece no inconsciente. E esse engenhoso esquema é encontrado não só em análises de homens neuróticos, mas de homens em geral. E como corolário ocorre a cisão da mulher entre “a mãe dos meus filhos” e a “amante”. A primeira fica com a santidade e a pureza da maternidade e a segunda com a sexualidade livre. O homem, se identificando com o filho, tem a mãe nas duas relações. Na vida conjugal a vida sexual é muitas vezes monótona ou mesmo ausente (pois é muito difícil transar com a mãe). E na relação com a amante, ou com a prostituta, também tem a mãe, mas de forma negada. Voltando à Vivian, ela se prostituindo se identificava com a mãe negada e, tendo tantos homens se protege da relação exclusiva que a levaria a uma proximidade maior da fantasia de transar com o pai. Se houvesse um vagabundo a 100 quilômetros de distância Vivian ficava atraída porque assim se tranquilizava que não era o vagabundo do quarto ao lado, aquele que transava com a prostituta mãe.


Em seu ofício mal assumido – Vivian não se identificava com este ‘trabalho’ – tentava cobrar cem dólares por hora, mas usava um alfinete de fraldas para segurar o zíper da bota, guardava seu dinheiro numa saboneteira de plástico, dentro da caixa d’água da descarga do banheiro e, como de início, não tinha dinheiro para pagar o aluguel. Não mudou nada então. Vivian vivia em perigo, o que preenche outra condição para que a mulher, segundo Freud, torne-se uma fortíssima candidata a ser escolhida como objeto amoroso – ir ao encontro do desejo do homem de salvá-la. Ela fazia tudo o que o contratante de seus serviços queria, menos beijar na boca. É muito íntimo. Estava certa, é um vínculo amoroso perigosíssimo. Ela também tentava se proteger através da cisão do vínculo entre o desejo sexual e o envolvimento amoroso. Edward também se encontra muito embaraçado em seu conflito edípico. Seu ódio manifesto é pelo pai ter se divorciado da mãe “por outra”, deixando-a pobre e causando a sua morte. Este ódio estava duplicado, pois se somava ao ódio clássico ao rival com o desejo que este morra (impulsos parricidas). Edward desejou que os pais se separassem e quando isso aconteceu, não pelo seu desejo, e a mãe morreu, deu um nó na fantasia do menino. Edward sentia uma culpa imensa porque a realização de seu desejo ocasionou a morte da mãe. Além de um curto circuito na onipotência dele e acreditar que o seu desejo de se livrar do pai pela morte tinha errado o alvo. Sentia culpa por triunfar sobre o pai / presidentes, comprando as empresas / mãe e desmantelando-as / matando-as. Derrubava este pai “das alturas” de seu status de presidente e tinha medo de altura pelo temor de retaliação. É interessante como esta fobia se resolve. Não foi com a intervenção da terapia. Esta focalizou apenas o ódio que Edward sentia pelo pai. Foi incompleta. Cara, mas não fez o que deveria. Ele estava interessado em comprar uma empresa que fabricava navios. Uma empresa gigantesca que se encontrava em dificuldades financeiras pela bagatela de um bilhão de dólares. Muitas resistências se elevam no caminho da negociação porque Morse, o dono da empresa, tem uma relação afetiva com ela. Morse tem também um neto / filho e está configurado um triângulo forte porque pai e filho estão unidos amorosamente para defender a empresa / mãe de roubos invejosos. Neste triângulo não há a clássica rivalidade entre filho e pai, há sim a superação do conflito edípico. Mas esta não é a principal razão pela qual a negociação fica encruada e quem dá voz terapêutica a Edward é Vivian: “Você gosta do Morse”. E, em minha opinião, foi exatamente isso que reverteu o quadro fóbico de Edward. Ele ter podido incrementar os vínculos amorosos, admitir que também gostava do pai e renunciar ao desejo de triunfar sobre ele. Principalmente isso. Na semana em que trabalha para Edward como acompanhante social, Vivian tenta dirigir o olhar do “patrão” para coisas simples e saborosas da vida que da sua cobertura ele não enxergava. Vivian o ajuda a pôr os pés literalmente no chão. As relações de Edward não caminhavam bem. Sua majestade o poder queria tudo para si. Ele não conseguia se envolver amorosamente com uma mulher sem que os compromissos profissionais atrapalhassem, ao extremo delas se afastarem e terminarem com ele. Ele era divorciado e cercado de amigos da onça, tais como o advogado Phillip, que se sente extremamente ameaçado ao perceber algo de diferente em seu comportamento, na semana em que Edward passou com Vivian. Ele parecia desconcentrado. Tirou até um dia de folga!


Após uma semana (terapêutica) juntos e a terapia não foi apenas ela tê-lo abraçado na banheira com seus 2m20cm de pernas, ele pôde, apesar da grande indecisão, propor ao Morse um contrato completamente diferente do seu habitual: construir, sanar uma empresa. Edward encontrou um caminho para a reparação dos danos que sentia ter causado às figuras parentais. E quando Edward abre a proposta ao Morse, este aceita com grande satisfação, elogia sua maneira de trabalhar, aperta seu ombro e diz estar orgulhoso dele. Enfim, os tão desejados reconhecimento e aproximação da figura paterna. Aquele senhor representante estava lhe dizendo que não estava nem sentindo ódio, nem ressentido pelo seu desejo de triunfar sobre ele e que é possível aceitar e compreender um menino tão perdido com os próprios sentimentos. E, afinal de contas, tudo isso ocorre na fantasia inconsciente de um menino que está desenvolvendo a sua personalidade de homem. O dia em que Edward se associa ao Morse é também o dia que Vivian vai embora. A semana termina e o objetivo, embora não o inicial, foi alcançado. Quando Edward chega ao quarto do hotel encontra Phill em cima de Vivian, tentando violentá-la. Edward dá-lhe um soco além de um “sermão” demitindo-o de seu cargo e do vínculo sádico e narcisista que ele, Edward, também alimentava. Enfim, dentro de Edward, as relações amorosas prevaleceram sobre as destrutivas e de controle. Só faltava então ele, ou se unir à Vivian, ou renunciá-la. Ela não havia aceitado a sua proposta de ser a sua “prostituta particular”. Ela queria mais. Queria o conto de fadas. Queria o príncipe que subia na torre pelas suas tranças ruivas e a salvava. Propunha-lhe casamento e não um apartamento, cartão de crédito, muitas lojas a lhe paparicarem, mas nada de marido, nada de “contrato exclusivo” com ele. Ela tinha uma grande novidade para administrar – os três mil dólares que havia ganhado de Edward como fruto de seu suor, num trabalho muito mais que honesto. Vivian fez por Edward muito mais do que foi contratada. Ela também se envolveu amorosamente e se apaixonou. É, acontece nas melhores famílias. Ela pretendia então ir para São Francisco, a cidade onde Edward a levou em sua estreia numa ópera e voltar a estudar. Como a sua colega de trabalho, Kit, deu voz: Ela não combinava com o Hollywood Boulevard. Eles se separam e para coroar o roteiro quem coloca o dedo para que eles se reencontrem é Barney, o gerente do hotel. Barney representa o pai amoroso, o que torce para que a filha encontre o seu parceiro. Barney é quem diz que a superação do Conflito Edípico foi alcançada. Ele ordena que o motorista da limusine, Darryl, que serviu a Edward, leve Vivian até sua casa. No dia seguinte ele não só diz isso ao Sr. Lewis como também comenta, ao admirar a joia que deve devolver à joalheria: Deve ser difícil abrir mão de algo tão lindo! E como todo mundo sabe, no caminho para o aeroporto Edward muda o roteiro (da sua vida), para numa florista e compra rosas vermelhas. Com a ópera tocando no último volume, vai ao encontro da princesa, montado na sua limusine branca, guarda chuva para o alto e flores ao vento. Desmonta da limusine pelo teto solar e sobe pela escada de incêndio até os braços de Vivian/Rapunzel. Pergunta a ela, antes de beijá-la, o que acontecia no final do conto, depois que o príncipe salvava a princesa. Ela o salvava de volta. E uma voz, como um coro num romance de Shakespeare, diz: What´s your dream? Isto é Hollywood, a terra dos sonhos. Alguns sonhos se realizam, outros não. Mas continuem sonhando. Há sempre tempo para sonhar, portanto continuem sonhando. Mas, e o beijo?

O beijo deste filme tornou-se inesquecível porque muito aguardado. Vivian fazia tudo o que o contratante queria, menos beijar na boca. Ela se protegia assim de se envolver amorosamente com o cliente. Este era um sábio conselho de Kit. No dia em que Edward mata o trabalho, eles vão a uma praça, comem Snap Dog sentados em baixo de uma árvore. Ela tira os sapatos e as meias dele e firma os seus pés descalços no chão. Na sequência tira o telefone de Edward e desliga-o. À noite tomam um drinque num bar comum e voltam para o hotel, ela deitada no ombro dele. Quando ela, preparada para deitar, mas não para dormir, entra no quarto, Edward dorme. Ela senta-se ao seu lado e o fita. Todo mundo sabe, mesmo quando ainda não se assistiu a fita que é agora que vai acontecer o beijo tão esperado. Ela o beija delicadamente no rosto e nos lábios e ele acorda e, de início um beijo delicado para não assustá-la, mas também para não quebrar o encanto, vai se tornando um beijo guloso e de entrega. Creio ser este o momento em que Vivian se liberta para sonhar e acorda Edward de um sono sem sonhos para uma vida cheia deles.


And you, what’s your dream?

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