top of page

Um luxo de beijo...

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 2 de set. de 2020
  • 5 min de leitura

Da série Filmes inesquecíveis com beijos inesquecíveis



Ela desce do táxi. A câmera bem próxima às suas costas, e focalizando-a de um ângulo inferior dá-lhe um ar majestoso. Caminha solenemente em direção da vitrine. Cabelos presos no alto da cabeça, óculos escuros, vestido longo preto – ancestral do nosso pretinho básico, colar de pérolas – duas voltas, casaco ou estola branca displicentemente jogada no braço. Enquanto aprecia as joias expostas abre um saco de papel e retira dele uma rosca e um café. Morde a rosca, pensativa, seguida de goles do copo descartável. E sai andando absorta pela calçada deserta. É manhã cedo. O caminhar mais elegante da história do cinema. É assim que Holly trata as suas tristezas em Breakfast at Tiffanys, Bonequinha de luxo para o Brasil, com Audrey Hapburn como Holly Golightly, em 1961. A cena descrita acima é da coleção de cenas inesquecíveis de muitos cinéfilos. Participando também George Peppard (Paul Varjak), participação especial Mickey Rooney como Sr. Yunioshi e mais que especial, Gato. Direção de Blake Edwards e música de Henry Mancini e Johnny Mercer. Ganhador de dois Oscares, um deles de melhor trilha sonora. Este é o filme mais delicioso que já assisti. Holly é uma pobre moça rica que sonha em casar com um milionário. Vive em Manhatan, "uma doida varrida num hospício" como diz a Paul na manhã seguinte ao dia em que se conheceram. Ela não se interessa em saber o nome dele, chamando-o de Fred, o nome de seu irmão que está no exército.

Holly perde sistematicamente as chaves do prédio em que se localiza o seu apartamento, um cafofo de categoria e aperta a campainha do vizinho de cima, o Sr. Yunioshi, um artista excêntrico de dentadura saliente, interpretado por Mickey Rooney.

Ela tem um gato sem nome e seu apartamento não tem mobília. A poltrona é uma banheira recortada com almofadas roxas, a mesa de centro é um caixote sobre uma pele de animal como tapete. Diz que só mobiliará a sua casa, que não sabe bem onde será, e dará um nome ao gato quando encontrar um lugar em que se sinta tranqüila e serena como se sente na Tiffanys. É para lá que vai quando sente uma nostalgia indefinida, tentando achar algo muito caro que perdeu. Holly, como eu já disse, é uma pobre moça rica que perdeu uma parte importante da sua riqueza interna e pensa que a restituirá ao casar com um homem rico. Pelo meio do filme sabemos que seu verdadeiro nome é Nora Mae e quando era uma menina de 14 anos costumava roubar ovos e frutas da casa de um médico veterinário e viúvo, com quem se casou. Ela teve seu casamento anulado e fugiu para um outro estado e depois para New York. Ela mesma fala de sua natureza selvagem que identifica com Nora Mae e que tentou domesticar aprendendo a falar francês e se vestindo num estilo sofisticado.

Mas a parte mais importante da sua riqueza interna e que ela sente que perdeu é a possibilidade de se ligar afetivamente a alguém. A capacidade de amar. Essa é uma joia interna das mais valiosas, se não a mais. E Holly descartou-a junto com a criatura selvagem que era Nora Mae, inclusive ficando sensivelmente mais magra. O gato ruivo e sem nome é o "objeto" onde Holly projeta este "eu selvagem", que pode deixar que cuidem dele e fica sempre por perto, rondando a cena.



E por falar em cena, as mais deliciosas deste clássico inesquecível são as da festa que Holly dá em seu apartamento, cheia de penetras e muita bebida. É hilária. O cafofo fica cheio de bêbados, todos se divertindo e fumando muito até que o Sr. Yunioshi chama a polícia. No momento em que esta chega a dona da casa estava passeando com um futuro candidato a marido e Paul mais um milionário brasileiro com quem ela também tentará se casar escapam pela janela do banheiro. Paul sobe ao seu apartamento e o brasileiro, muito preocupado com a sua reputação, dá um jeitinho de fugir pela escada de incêndio.

Mas a cena ou a sequência de cenas que merece ficar eternamente na memória é aquela em que Holly e Paul, para comemorar um conto que ele vendeu a um editor, resolvem sair e fazer coisas que nunca fizeram. Passear de manhã pela Quinta Avenida – ela; ir à Tiffanys – ele. Lá não conseguem comprar nada romântico por dez dólares, mas conseguem que a Tiffanys grave as iniciais dos dois numa aliança que veio de presente numa caixa de biscoitos. Encantador. Depois vão à Biblioteca Municipal onde ela nunca havia entrado e Paul autografa seu livro e, finalmente, a melhor cena de todos os tempos, Holly e Paul entram num armarinho, uma espécie de papelaria, para roubar algo, o quê Paul que foi um menino sensível, do tipo estudioso, nunca havia feito. E aí começam a avaliar o que vão roubar: uma corneta, um rolo de macarrão, uma cúpula de abajur, um aquário com um peixinho vermelho, até que decidem por máscaras infantis e saem da loja com elas vestidas. O roubo está "na cara" e ninguém vê. É esta travessura que os aproxima o suficiente para o primeiro beijo e uma noite de amor.



Holly passa a fugir de Paul. Por pura ingenuidade, vai presa e diante do escândalo o brasileiro rico que ia se casar com ela, temendo novamente pela sua reputação, rompe o compromisso. Ela está decidida a ir assim mesmo para o Brasil. Na verdade, ela está se sentindo muito ameaçada porque está se envolvendo amorosamente com Paul. Ela quer ir para longe porque acredita que a distância física a deixará segura.

Tem uma crise de arrogância desprezando os apelos de Paul para que não vá, desprezando também o Gato e deixando-o num beco embaixo de uma tempestade. Paul desiste impotente diante da pobre moça que não podia nem se ajudar, nem tão pouco ser ajudada, se colocando assim numa situação de pobreza extrema. Antes de deixá-la ele lhe diz algumas verdades, que seja onde for ela esbarrará em si própria e joga a caixinha com a aliança gravada que carrega há meses e não quer mais fazê-lo.

Nós não podemos saber jamais quando chegará o momento de alguém ou mesmo o nosso de mudança de rumo. Podemos saber sim quando o nossochegou. E é isso o que está acontecendo a Holly enquanto sozinha num táxi parado dentro de uma tempestade (esse momento sempre se parece com uma), segurando uma aliança barata de caixa de biscoitos com iniciais gravadas pela Tiffanys, mas deixando partir aqueles que representavam os vínculos mais caros de uma vida.

Holly sai do táxi e vai atrás de Paul que foi atrás do Gato. Mas é ela quem tem que, não só chamar: "Gato... Gato...". Tem que penetrar no deprimido beco a procurar por partes suas. Acolher aquele monte de pelos tão ruivos de assustados, sujos e molhados e envolvê-los na firme limpeza amorosa de seu casaco encharcado de lágrimas.

Mas e o beijo?

É nesta cena final que acontece o beijo inesquecível de Bonequinha de Luxo. Um beijo excitantemente úmido de esperança...

...e havia nas mãos e nos braços de Holly, enquanto beijava Paul Varjak duas coisas que simbolizavam uma pobreza rica: uma aliança presente de uma caixa de doces com iniciais gravadas pela Tiffanys e um gato vira-lata e sem nome, mas que exatamente naquele momento passou a ter um.




Comments


Escreva-me algo. Deixe-me saber qual foi sua experiência aqui, no Gazeta Insônia.

Grata por se inscrever!

© 2023 by Train of Thoughts. Proudly created with Wix.com

bottom of page