Cachorro outra vez. Outra vez cachorro
- Rosana Almeida
- 29 de set. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de jan. de 2021
Esta publicação dedico à minha querida Mari Antiquera.
Nossos Eternos Bebês
Amamos ter uma criação não humana sejam gatos, cães, aves, répteis, coelhos, peixes... E temos uma relação particular com eles, uma relação que é só nossa. Eles nos entendem e respondem à nossa comunicação e nós entendemos o que dizem. Eles nos fazem sentir que estamos vivos e somos muito necessários a eles, à sua sobrevivência. Quando partem sentimos e choramos demais.
É muito frequente algumas pessoas dizerem, nesses momentos de dor, que não vão mais ter criação, que não querem mais se envolver porque sofrem demais (como se não sofrêssemos quando parte um pai, uma mãe, um filho ou um amigo e nem por isso deixamos de tê-los).
Foi o pensar nisso que deu origem a um artigo/crônica que escrevi em 2007, porém muito atual. Convido a todos a lerem e também a refletirem sobre os fenômenos inconscientes que descrevo. Nós sempre podemos fazer isso: chamar para dentro de nós as informações que temos acesso e usá-las para o autoconhecimento. Esse processo não termina nunca e esse hábito de nos examinarmos cria raízes benéficas ao nosso desenvolvimento. Tente!
Cachorros outra vez. Outra vez cachorros.
Este texto não é uma resenha, mas me foi inspirado pelo livro de Walcyr Carrasco, Anjo de quatro patas. A verdadeira amizade entre um homem e seu cachorro. Editora Gente, 2008. Quem tem criação sabe o que vai encontrar num livro com este título, mas não hesita em comprá-lo, que não foi o meu caso, pois ganhei de presente de uma amiga também cachorreira, e iniciar a leitura imediatamente em minutos roubados de outros afazeres que, se não fosse por isso, estariam recebendo a devida atenção. Os relatos sobre a verdadeira amizade entre um homem e seu cachorro são ao mesmo tempo comoventes quanto divertidos que, até quem tem medo irracional de cachorro se envolve. Como é o caso de uma amiga muito querida que me contou o quanto estava se divertindo com as peripécias de Marley e eu. Carrasco é escritor, cronista de uma revista famosa e de roteiros de novelas deliciosas, tais como: O cravo e a rosa e Chocolate com pimenta. O humor é uma marca forte de Carrasco e ele começa o livro contando uma situação hilária quando seu irmão e sua cunhada resolveram ficar ricos com uma criação de husquies siberianos e tiveram que amargar duas decepções. A primeira foi que o macho, top da raça, no qual investiram grande parte das suas economias era estéril, e a segunda foi que da primeira ninhada proveniente do acasalamento da sua fêmea com um macho “alugado” de um outro canil nasceu, ao contrário dos esperados dez cãezinhos, um único filhote cujo nome ficou sendo Uno. É da convivência entre Walcyr Carrasco e seu Uno que trata o livro. Quase no final, o autor publica várias mensagens que recebeu de leitores após uma crônica na qual, não conseguindo conter a tristeza, compartilhou com eles a sua amargura de ver seu fiel amigo definhando. Achei muito cansativa esta parte do livro. Creio que o autor poderia incluir só uma amostra das mensagens, pois até os amantes de criação sabem que essas histórias são repetitivas. Mas foi exatamente esta parte que me provocou um pit stop para pensar em alguns aspectos que ainda não se revelaram, em toda a sua intensidade, para mim. É claro que em muitos momentos da história as lágrimas rolaram e foi inevitável a re-vivência de perdas: a Mimi, uma pequinesa, quem não teve um, dada por minha mãe a uma tia, e claro acompanhada de uma mentira à menina que eu era: “A Mimi morreu...”. “- Sem ao menos ter ficado doente?!”. A Fusquinha, uma galgo-afegã que pegou hepatite de um gato que apareceu no pedaço e foi a primeira eutanásia da minha vida. Teve a Brigite, uma pincher e a Saré, uma coker spaniel, mais duas eutanásias, mas foi com a Saré que comecei a reconhecer que ela, a eutanásia, é um ato de amor. Estão vendo como a história se repete para quem escolhe tê-los em sua vida? E foi para quebrar o repetitivo que eu me fiz uma pergunta: por que o sentimento que liga o dono a sua criação é tão forte? Eu gostaria de partir deste ponto: o sentimento que nos liga a nossa criação é, desculpem a redundância, intensamente forte. Mas não é inexplicável. Quando o nosso animalzinho está doente, somos mobilizados nas profundezas de emoções primeva, primitivas, primárias. Não é igual à perda ou à ameaça de perda de um pai, um parente ou um amigo próximo. É qualitativamente diferente. Penso que é mais próximo do que experimentamos diante da morte ou de um sequestro, ou ainda desses crimes hediondos envolvendo bebês. Nossos animais são portadores, diante de nosso olhar inconsciente, de preciosas partes nossas que ficaram igualadas a, ou permaneceram, bebês, mas no sentido de precisarem ser protegidas, continuarem dependentes, amarem incondicionalmente e provocarem em nós um amor incondicional. (Acabei de interromper para dar 4ml de Amoxicilina 250mg – antibiótico infantil – para a Carol, uma bichon-frise de 11 anos, tentando evitar uma possível quarta cirurgia para a retirada de cálculos vesicais – pedras na bexiga). Quando um dono quer comunicar-se com seu cão, ele pode recorrer a muitos recursos aprendidos, descobertos e desenvolvidos, mas todos, sem exceção, serão acompanhados de um olhar. Este olhar é o veículo da comunicação mais elementar entre dois seres que se amam, precisam um do outro, embora de forma diferente, e querem continuar precisando, pois, o ser racional, o pensante, sente inconscientemente que naquele ser estão projetadas partes incrivelmente valiosas de seu self, partes estas que jamais se desenvolverão na sua integridade, pois faz parte do ser humano carregar pela vida uma multiplicidade de aspectos diferentemente amadurecidos. Carregamos dento de nós para sempre o bebê que fomos um dia. E o olhar me faz pensar numa segunda condição que caracteriza o sofrimento que esta relação envolve – o sentimento de impotência, o que sentimos diante de situações em que não podemos fazer absolutamente nada para modifica-la que é o caso da morte de um ente querido. E aqui também está mais uma afinidade com o sofrimento que vivenciamos diante de bebês doentes e sofrendo e que é qualitativamente diferente do sofrimento diante de um adulto doente: nós não podemos dizer, verbalmente, que estamos fazendo de tudo ao nosso alcance para aliviar o seu sofrimento, nós só podemos fazê-lo. Nós não podemos dizer, com palavras, que infelizmente temos limites, nós só podemos tolerar que os temos (e como é difícil isso!) e também chorar por isso. Mas é esse bebê que ainda somos, em algum canto silencioso da nossa mente, que não compreende, ou somos nós que achamos que não compreende, porque aquele adulto que também somos não sabe tudo e não pode tudo. Não tem poder sobre a dor e a morte. Acho que eu já disse, em alguma outra crônica, a maneira como tento amenizar a dor que certamente virá. Minha relação com elas, atualmente tenho duas cadelinhas, minha relação com elas...
é dialética. Elas não existem somente para trazer alegria a mim e à casa. Eu retribuo com todos os cuidados de uma criação amorosa e de responsabilidade e tenho sempre a sensação que as duas partes cumprem o seu papel e a sua missão. E assim vamos vivendo, amando e criando. E descobrindo que para todo dono seu cão é uno.
Esse artigo foi escrito em 2007. Carol morreu em 2013 por crises de Au-auzheimer canino.
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