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UMA PROFESSORA DE LÍNGUA PORTUGUESA

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 4 de set. de 2020
  • 3 min de leitura

Carta aberta....



“Dona” Ivone Fui sua aluna em 1971 e 72, quinta e sexta série respectivamente. Resolvi lhe escrever uma carta para lhe contar como a senhora se encontra viva na minha memória afetiva. Eu presumo que a senhora saiba o quanto era temida. Respeitada mas temida. Naquela época medo era confundido com respeito, mas apesar deste temor havia momentos hilários na sua aula. Um deles era quando alguma de nós, sim, naquela época o “Instituto Nossa Senhora Auxiliadora” era exclusivamente feminino, escrevia a palavra 'de repente' tudo junto. Como parecia não adiantar a simples informação que 'de repente' se escreve separado, a senhora dramatizava uns “petis” e se dirigia marchando ao quadro-negro que era muito longo e escrevia no canto esquerdo um DE bem grande e no canto direito um 'repente' com as letras diminuindo progressivamente de tamanho até o último 'e'. Uma outra marca sua: naquele tempo a gente sabia da presença da professora na escola (até 1972 as professoras também eram exclusivamente do sexo feminino) pelo carro no estacionamento. Lembra-se que os carros eram estacionados no pátio? Então, o seu era um fusca. Um fusca branco-sujo ou bege, essa lembrança me escapa. Eu acho que era branco-sujo. O seu carro sempre estava lá. A senhora nunca faltava e quando acontecia causava preocupação entre as alunas. O motivo seria muito grave como foi um falecimento que ocorreu na sua família neste biênio. Outra marca sua: a senhora sabe que criança repara em tudo e na década de 70 os adolescentes de onze e doze anos eram mais criança do que são hoje em dia. Nós reparávamos muito na maneira como cada professora se trajava. E a sua... bem, era a sua maneira. Penso hoje que, como era prático às alunas trajarem uniformes, por que não os professores se beneficiarem também com esta praticidade? O seu “uniforme”, dona Ivone, era uma saia de um tweed xadrezinho bem miúdo, preto e branco, e sempre com uma camisa. As camisas mudavam, claro, e não eram só de tons pastéis, não. Havia até uma vermelha! E para finalizar de compor o conjunto, um par de óculos grandes e escuros. Os sapatos eram sempre mocassins baixos e pretos, mas sapato é só complemento. Agora, o quê imprimiu definitivamente a sua marca dentro de mim foi a história que vou lhe contar agora: No primeiro dia de aula a senhora disse que leríamos muito, coisa e tal, e o primeiro livro que leríamos era As Caçadas de Pedrinho de Monteiro Lobato. Quando na segunda aula, eu ainda não havia adquirido o livro, durante aqueles quinze minutos da aula de Rítmica, lembra?, enquanto as minhas colegas pulavam, dançavam, etc, eu ficava quieta, tranquila na minha carteira. Resolvo abrir o livro de Gramática e Interpretação de Textos e encontro um texto, devia ser um trecho apenas d’As Caçadas de Pedrinho e começo a ler. A senhora me observou e percebeu que eu sorria enquanto lia. Quando terminou a aula de Rítmica e começou a sua aula a senhora perguntou: - Rosana o que você estava lendo? - As Caçadas de Pedrinho, dona Ivone – respondi. Aí a senhora pediu, ou será que ordenou? - Então leia para nós, em voz alta. E eu li, prestando atenção nas vírgulas, nos pontos, caprichando na entonação nos pontos de interrogação e exclamação. Havia um trecho que dizia mais ou menos assim: “E Pedrinho pegava a sua espingarda e fazia PUM!” e eu caprichava nesse “pum!”. Depois a senhora pediu a uma outra aluna para ler: “E Pedrinho pegava a sua espingarda e fazia pum!”. A senhora interrompia: - Rosana, leia de novo esse trecho para sua colega escutar.


E eu lia, muito orgulhosa da minha leitura: “E Pedrinho pegava a sua espingarda e fazia PUM!”. Não foi uma vez só que a senhora me pediu para repetir a leitura. Acho que as colegas ficavam inibidas com os possíveis significados daquela palavra e engoliam o som. Bem, dona Ivone, naquele dia eu descobri, junto com a senhora, que eu podia ler assim, com prazer. Ontem, num café coletivo no local em que trabalho, eu estava lendo enquanto tomava meu café com pão-de-queijo. Não era ficção, era um livro científico e eu percebi que mesmo assim, e num lugar público, era inevitável um sorriso, um arregalar de olhos, um levantar de sobrancelhas. Quando leio em casa eu não só sorriu mas às vezes dou boas gargalhadas. Minha mãe comenta: “Essa fica rindo sozinha!”. Eu respondo sempre do mesmo jeito: “Nunca se está só quando se está lendo um livro”. Era isso que pensei em lhe contar nesta carta. Dizer-lhe que a sua figura ficou imprimida dentro de mim com muitas associações boas e eu sou um pouco produto de seu trabalho. Essa impressão dentro de mim é, eu não queria terminar com um “clichê” mas alguém já fez uma frase parecida antes, infinita enquanto eu viver. Um abraço da sua aluna. Rosana


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