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MINHA CARTA PARA "ALÉM DOS MUROS"

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 12 de set. de 2020
  • 5 min de leitura

Com prefácio.


Prefácio


Este escrito, um misto de crônica, pesquisa e poesia se deu ou está acontecendo em dois tempos diferentes. Talvez seja essa uma das formas do tempo de Kairós – o tempo da oportunidade ou o tempo de Deus.

No dia 12 de setembro de 1948, em Santiago, no Rio Grande do Sul, nasceu Caio Fernando Abreu. Estaria comemorando 82 anos. E como não tenho o hábito de homenagear ninguém no dia da sua morte, quero hoje falar um pouco dessa figura da qual tenho orgulho de ter sido influenciada por ele, em minha escrita, meu jeito, meu estilo.

Ok, já disse onde ele nasceu. E para quem não teve o prazer de conhece-lo, seus livros, suas peças, filmes e sua coluna no Caderno 2 do Estado de São Paulo, às quartas feiras. Sim, foi nessa coluna que conheci o Caio. Foi com ele que aprendi o que é uma crônica, um gênero genuinamente brasileiro em que cabe tudo. Crônica é o gênero mais próximo da vida cotidiana. Crônica é uma forma de vivermos literatura, de escrevermos a vida, de deixarmos um legado próximo e até de nunca morrermos. Sim, Caio Fernando Abreu está bem vivo dentro de mim não só de mim, mas de muita gente.

Foi jornalista, dramaturgo, escritor brasileiro. Apontado como um dos expoentes de sua geração. Sua escrita é de um estilo econômico e bem pessoal. Ele falava de sexo, de medo, de morte e principalmente da angustiante solidão. Tinha uma visão dramática do mundo moderno e era considerado um “fotógrafo da fragmentação contemporânea”.

Foi perseguido na época da ditadura militar e em 1968 se refugiou no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst. No início da década de 1970 se exilou nos países baixos da Europa, Espanha, Suécia, Inglaterra e França. Regressou ao Brasil em 1974 e nesse mesmo ano descobriu-se portador de HIV. Era homossexual assumido. Nos últimos anos de sua vida viveu na casa de seus pais se dedicando à sua escrita e à jardinagem. Cultivava um jardim de rosas.

Morreu em 25 de fevereiro de 1996 em Porto Alegre, no mesmo dia da morte de Mário de Andrade. Talvez tenha sido ele, o Mário, que o tenha recebido do outro lado do véu.

Ganhou o prêmio Jabuti de literatura, em 1996 pelo livro Ovelhas Negras, em 1989 pelo livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso e em 1984 por O Triângulo das Águas.



E foi no dia 26 de fevereiro de 1996 que eu escrevi Minha Carta Para Além dos Muros. Um poema muito mal costurado. Fiz questão que ficasse remendado, pois era assim que eu estava me sentindo – uma roupa esgarçada. O poema seria um retalho para aguentar mais um tempo e como não se põe remendo novo em roupa velha, eu teria que me aguentar por um período, muito mal ajambrada emocional e literariamente falando.

Os últimos anos da vida de Caio Fernando foram difíceis para todos que o amavam. Início dos anos do HIV, ainda não acontecia de pessoas viverem de outra forma senão a esperarem a própria morte. De minha parte era assim que acontecia: a publicação da coluna de Caio no Caderno 2 de quarta era o que me dizia que ainda estava vivo. Poucas vezes, muito poucas mesmo, a crônica falhava com algumas palavras do editor. Caio lutou bravamente.

É interessante como acontece conosco, seres humanos, quando sabemos que alguém que amamos está com os dias contados, apesar que todos nós estamos, só não sabemos quantos. Por mais que amemos, chega uma hora que estamos tão estressados que desejamos, inconscientemente, que aquilo termine logo. E o terminar logo significa que a pessoa se vá. É muito triste sim, mas é isso o que acontece dentro da gente. Na época eu ainda não sabia disso e talvez estivesse exausta de passar uma semana inteira tensa com um breve alivio na quarta-feira. Sim, porque eu lia a coluna dele pela manhã e à tarde já estava vivendo o período de espera.

Naquele dia eu estava no consultório e, diferente do meu habitual, esparramei o jornal pelas poltronas e chão. Curiosamente o caderno principal onde estava a notícia de sua morte, no dia anterior ficou caído bem ao lado esquerdo da minha cadeira e era exatamente por este lado que eu precisava passar para sair para os outros cômodos da casa. Quer dizer, não sei quantas vezes eu, literalmente pisei a notícia. Foi a forma mais imediata que encontrei de agredir a realidade, agredir quem estava me dando a notícia, mas também não me permitindo nem chorar nem tentar reparar o meu mundo interno, escrevendo algo.

E depois de tantos entra e sais, sai e voltas, talvez eu já estivesse me sentindo preparada para ler. Antes do que teria sido um último pisar a realidade, eu li a manchete que dizia mais ou menos isso: Morreu ontem o escritor Caio Fernando Abreu. Depois de um tempo, olhando a notícia e sem querer acreditar que eu não tivesse a visto antes, mas é claro que vi!, joguei as costas para a cadeira que mal oferecia um encosto e devo ter pensado no que iria fazer dali pra frente. Bem, naquele momento eu tinha que ser como ele. Escrever a minha dor. E foi isso que fiz...



Caio Fernando Abreu morreu ontem. Morreu Caio Fernando Abreu. Que rima idiota!!! Natural. Hoje não há rimas ricas. Não há rimas que não sejam assim, tão idiotas. As palavras estão todas ausentes. Estão com Caio. Caio Fernando morreu. O que dizer se Caio Fernando morreu? Eu quero falar a ele, diretamente: “Caio, foi você quem disse que precisamos suportar a vida e beija-la na boca. Você só não disse que essa língua poderia ser tão fria, fria e amarga. Hoje está tudo vazio. Vazio e frio. Hoje nenhum beijo me insuflaria vida. Eu tenho gosto de morte na boca. Gosto da tua morte”. “E os anjos Caio? Ah... os anjos! O vazio de hoje se dá também por isso, eles estão todos com você. Brincando e rindo talvez ou, quem sabe, mostrando-te um jardim, cheio de rosas, só para você cuidar”. “Você disse que os girassóis não morrem com facilidade. E aí Caio, você disse. Disse também que era como eles. O que aconteceu, faltou vida? Você estava cansado? O que faltou? Palavras, anjos e santos não, pois estavam todos ao teu lado?” “Acho que ninguém pode ser ‘positivo’ durante muito tempo. Não aqui, nesta terra. Sabe aquele sobrado colonial espanhol, com portões que podem ser abertos a qualquer momento, para entrar e sair ? Então você passou por esse portão. Agora você se encontra além... eu, aquém”. “Você morreu e eu não tenho palavras para terminar. Vou deixar o texto simplesmente morrer. Sem rimas, beleza ou encanto porque Caio Fernando... 26.02.1994 Escrevi este poema quando me deparei com a manchete do jornal, jogado ao chão, bem no caminho por onde eu teria que passar. Não sei quantas vezes passei por ele. Se bem me lembro, tinha me sentado à escrivaninha com a cadeira em ângulo de trinta graus e o meu campo de visão era intermediário entre a mesa e o jornal ao chão. Creio que houve um momento que eu senti ter que olhar para o jornal e olhei.


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