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O que ela tem que eu não tenho?

  • Foto do escritor: Rosana Almeida
    Rosana Almeida
  • 1 de mar. de 2021
  • 9 min de leitura

Atualizado: 17 de out. de 2021

E, num dia que resolvi encostar a barriga na pia e viajar para dentro de mim mesma, enquanto lavava pratos e panelas, passei a prestar atenção em um diálogo interno.

O pai de uma amiga minha muito querida dizia: “Mulher precisa ter-a-pia”. Deixando de lado qualquer conotação machista, concordo com ele. Lavar uma pia de louças sujas é uma tarefa terapêutica, não só de higiene mental, de limpeza de conteúdos antigos e contaminados de mágoas e expectativas frustradas, mas terapêutico no sentido de ficarmos ali, entregues a um momento de associação livre, costurando lembranças num patch work mental criativo. Um caleidoscópio emocional que, a cada minuto muda a configuração de cores, emoções quentes e frias, aromas tanto agradáveis como indesejáveis e imagens lindas ou assustadoras.


E, num dia que resolvi encostar a barriga na pia e viajar para dentro de mim mesma, enquanto lavava pratos e panelas, passei a prestar atenção em um diálogo interno. Eram os meus botões conversando entre eles e tentando me incluir na conversa...

– Como é mesmo aquela música?

Música, que música?

– Aquela do disquinho cor de rosa.

Nossa, nem lembrava mais que tive um disquinho cor de rosa...

– Rosana, você sabe que não esqueço nada e aliás, te ajudo a lembrar daquilo que você está precisando e descartou da sua memória para criar espaço para novas coisas.

Te serei eternamente grata, meu amigo, inconsciente.

– Mas... não foge aí... aquela música do disco rosa... como é mesmo?

Quem quer casar com a senhora baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha....

Que história é essa de barata ter dinheiro na caixinha?

Rosana, a música está dizendo de uma época que as mulheres tinham dote que era oferecido ao futuro marido, quele que resolvia casar com ela...

Sei... Era como se fosse uma indenização...

Rosana, não viaja. Tem alguma coisa que você está querendo pensar e está me incitando a buscar lembranças...

A fita no cabelo não me diz nada...

A barata diz que tem sete saias de filó. É mentira da barata, ela tem é uma só! Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem é uma só. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem é uma só...

Sabe que essa estrofe me faz pensar em uma barata voadora, parece que ela tem muitas asas. Parecendo saia e saiotes. E aquela impressão de que ela é tão pesada que vai esbarrar e cair em cima de mim... (asco...)

A barata diz que tem um anel de formatura, é mentira da barata, ela tem a casca dura. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem a casca dura. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem a casca dura.

Quer me fazer chorar, é? Quer me fazer lembrar que minha mãe me deu um anel de formatura quando eu já tinha vinte anos de profissão??!!

Rosana, nós já conversamos sobre isso... É passado, ficou no passado. Você já perdoou sua mãe. Não viva a situação como se fosse presente.

Ok, você está certa.

A barata diz que tem um cabelo cacheado. É mentira da barata, ela tem coco rachado. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem coco rachado. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem coco rachado...

Que história é essa de cabelo cacheado??? Estou ficando indigesta com essa história!! E a barata tem, tem, tem!! Tem dinheiro na caixinha, tem cabelo cacheado, tem fita no cabelo!!! Que história é essa de barata ter o que eu não tenho??!!

Rosana, é você que está pedindo que eu lembre! Ou melhor, eu jogo pra você e você pega, então somos nós duas que queremos. Eu só estou fazendo a minha parte... A barata diz que tem um chinelo de veludo. É mentira da barata, ela tem o pé peludo. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem o pé peludo! Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem o pé peludo!

Graças ao pé peludo da barata é que ela consegue ficar grudada nas coisas, subir em paredes... Grudada em parede... Cabelo cacheado... peraí!!!


E uma lembrança aterradora invadiu a totalidade da minha mente. Fiquei cega para o mundo externo. Cega e gelada. Eu não estava mais na cozinha da minha casa nem lavando louça. Estava no banheiro da casa de praia dos meus pais dando banho na minha cocker spaniel caramelo, a Saré. Foi na década de 80, entre 1985 e 1988. Eu usava cabelo cacheado. Estava lindo! O banheiro pequeno, daqueles que ficam no quintal e que usávamos quando estávamos na piscina ou fazendo churrasco, tinha as suas paredes cobertas de azulejos brancos e limpos. De repente ela entra, negra e ágil, por debaixo da porta e eu, com tamanho susto caí no chão. Eu, caída num chão alagado, no chão compartilhado com uma barata. Com a queda tive um forte impacto nos joelhos. Eu não sabia se chorava de dor ou de medo. Se massageava os joelhos ou se tentava localizar a barata. Não sabia onde ela estava. Deduzi, precipitadamente, irascivelmente que quando caí no chão e porque o banheiro era pequeno que ela havia subido no meu corpo e estava enroscada no meu cabelo cacheado. E, o que eu não precisava naquele momento era de uma barata de coco rachado e invejosa do meu cabelo cacheado subindo em mim. Já estava gritando, apesar de sem voz, gritos roucos que ainda me restavam. Um amigo do meu pai abriu a porta do banheiro para me acudir e, é claro que a Saré escapou, toda ensaboada, daquele ambiente maluco – Vou procurar outro sítio, eles são humanos, que se entendam – mesmo naquela situação de extrema angústia minha réverie materna ainda captou o pensamento de minha cria canina.

O amigo do meu pai olhava para mim, apavorada que estava, tentando avaliar a situação. Eu não conseguia levantar porque o chão estava molhado e os meus joelhos doíam. Tem uma barata enroscada no meu cabelo... Consegui dizer. Ele se manteve calmo. Alternava o olhar entre mim, caída estatelada, molhada e doída no chão e no alto da parede do fundo do banheiro. Veio até mim e, não lembro como, se me pôs em pé para que eu saísse andando ou se ele me carregou gentilmente e me colocou em uma cadeira num ambiente aberto, cheio de ar. Eu estava claustrofóbica também. Ele entrou no banheiro, trucidou a indesejada e trouxe para que eu visse que ela não estava em mim. Ele fez tudo isso de maneira calma, eficiente, continente, sem essas gozações que pessoas insensíveis fazem quando só sabem zoar com os sentimentos alheios.

(Toninho, não sei se você vai ler essa crônica, deixo aqui registrado o meu agradecimento pelo respeito, compaixão, solidariedade e elegância com que me tratou. Um exemplo de homem. No mínimo, um cavalheiro. Gratidão imensa.)



É realmente difícil de entender porque um simples inseto consegue desestruturar momentaneamente alguém tão forte e capaz de enfrentar situações difíceis e complexas como eu. E tantas outras pessoas capazes de administrar suas vidas. Sustentam suas famílias de maneira honrosa, mas simplesmente são incapazes de entrar num elevador, ou ficar a menos de um quilometro de distância de uma galinha, ou não conseguem dormir com a gostosa penumbra da madrugada entrando pela janela e precisam de uma lâmpada elétrica a quebrar uma escuridão que nem chega a ser breu.

Escolhi a uma lembrança sendo instigada por associação livre para ilustrar alguns aspectos importantes a se esclarecer dentro do enfoque psicanalítico a respeito das fobias. Primeiro a ferramenta usada em uma sessão de psicoterapia psicanalítica e/ou psicanálise – a associação livre.

Freud usou da hipnose por um curto espaço de tempo porque logo percebeu que a paciente podia colaborar ativamente para o aflorar do material inconsciente, reprimido. A associação livre gera a catarse. Catarse é um estado emocional momentâneo em que emoções fortes invadem a mente e a pessoa vivencia no presente a situação passada, como se estivesse acontecendo no aqui e agora.


E uma lembrança aterradora invadiu a totalidade da minha mente. Fiquei cega para o mundo externo. Cega e gelada.

Segundo, dentro da visão de Melanie Klein não existe aquilo que se chama de trauma em outros enfoques e técnicas. A pessoa que sofre de fobia, seja lá por qual for o motivo, fica tão desestruturada e alterada porque o terror está acontecendo no presente e se não fosse assim não teria a força que tem de abalar de forma tão intensa

Para essa psicanalista existe uma condição fundamental, guardiã da saúde mental que é: Objetos terroríficos devem permanecer nas profundezas do inconsciente e nunca saírem de lá.


E o que são objetos terroríficos?

No começo da vida, nos três primeiros meses com alguma margem para mais ou para menos, de acordo com condições genéticas, o bebê percebe a mãe como objetos parciais. Ele ainda não tem condição de perceber uma pessoa completa. Percebe mãos que o acariciam, voz que o acalenta, boca que se movimenta deixando aparecer algo branco. Essa coisa que eu estou chamando de boca, às vezes se aproxima e toca, gostosamente, partes do seu corpo. E tem também aquela mãe que elimina toda a ameaça de morte que chama mãe seio. E essas mães passeiam durante esse período, a mãe voz, a mãe mão, a mãe boca e a mãe seio, criando um entorno acolhedor e pacífico. A mãe é o primeiro ambiente do bebê. Esses objetos não o assustam. Ele vive num mundo fragmentado. É assim o seu ambiente interno também.


Imagine um bebê entretido numa lalação e a mãe, em pé ao lado do berço, olhando para ele e sorrindo e conversando com ele. Para ele é uma ciranda de objetos, boca, voz, dentes, olhos, seios, que ele identifica como familiar. Ele não tem medo.

Imagine-se agora, você adulto sonhando com uma boca imensa solta pendurada no teto. Mãos penduradas, sem ordem, voando de cá para lá. Essas mãos podem chegar perto parecendo que vão te tocar. Certamente, na idade adulta, esse será um sonho de ansiedade – UM PESADELO.


Esses são os nossos objetos terroríficos. Objetos que constituem as primeiras camadas da personalidade e que, na medida que vamos nos desenvolvendo passamos a nos relacionar com objetos mais estruturados, a mãe como pessoa completa e aqueles objetos anteriores vão sendo reprimidos para as profundezas do inconsciente e lá devem ficar e isso é condição para a manutenção da saúde mental. É por isso que quem tem como prato principal em seus hobbies assistir filmes de terror, passear em trens fantasmas, castelos de terror, etc, ficam cutucando a onça com vara curta. Ficam chamando para as camadas mais superficiais da personalidade lembranças que deveriam ficar nas profundezas. Ou você acha que quando era adolescente assistia filmes de terror em bando de amigos só por diversão? Era para se protegerem. Era porque tinham medo, sim.


A barata, para mim, representa todo e qualquer objeto que deveria ficar nas profundezas do esgoto mental. Não invadir o ambiente que me empenho em deixar limpo e saudável. Harmonioso de se viver. Elas que fiquem com suas caixinhas de dinheiro, suas saias de filó e suas cascas duras bem longe de mim.


E para quem gostou de lembrar da música, deixo aqui a letra...

A barata diz que tem Sete saias de filó É mentira da barata Ela tem é uma só! Ha ha ha, ho ho ho Ela tem é uma só! Ha ha ha, ho ho ho Ela tem é uma só! A barata diz que tem Um anel de formatura É mentira da barata Ela tem a casca dura Ha ha ha, ho ho ho Ela tem é a casca dura! Ha ha ha, ho ho ho Ela tem é a casca dura! A barata diz que tem Um sapato de fivela É mentira da barata O sapato é da mãe dela Ha ha ha, ho ho ho O sapato é da mãe dela! Ha ha ha, ho ho ho O sapato é da mãe dela! A barata diz que tem Uma saia de cetim É mentira da barata Ela tem é de capim Ha ha ha, ho ho ho Ela tem é de capim! Ha ha ha, ho ho ho Ela tem é de capim! A barata diz que tem Um chinelo de veludo É mentira da barata Ela tem o pé peludo Ha ha ha, ho ho ho Ela tem o pé peludo! Ha ha ha, ho ho ho Ela tem o pé peludo! A barata diz que tem Sete saias de balão É mentira não tem não Nem dinheiro pra sabão Ha ha ha, ho ho ho Nem dinheiro pra sabão! Ha ha ha, ho ho ho Nem dinheiro pra sabão! A barata diz que usa Perfuminho da avon É mentira da barata Ela usa detefon Ha ha ha, ho ho ho Ela usa detefon! Ha ha ha, ho ho ho Ela usa detefon! A barata diz que tem Um vestido de babado É mentira da barata O vestido tá rasgado Ha ha ha, ho ho ho O vestido tá rasgado! Ha ha ha, ho ho ho O vestido tá rasgado! A barata sempre diz Que viaja de avião É mentira da barata Ela vai é de busão Ha ha ha, ho ho ho Ela vai é de busão! Ha ha ha, ho ho ho Ela vai é de busão! Fonte: Musixmatch Compositores: Dp / Marcos Patrizzi Luporini


estrofe:

A barata diz que tem um cabelo cacheado. É mentira da barata, ela tem coco rachado.

Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem coco rachado. Rá-rá-rá, ró-ró-ró, ela tem coco rachado...

Faz parte do meu repertório, mas juro que não inventei. O jogo de palavras que usei na composição desta crônica também sugere que o objeto barata­ está carregado de um sentimento bastante primitivo, a inveja. Na minha fantasia inconsciente, naquele momento, eu estava sendo atacada por uma barata de coco rachado invejosa do meu cabelo cacheado...

O assunto inveja merece uma crônica só para ele.


A barata diz que tem uma vida imortal. É mentira da barata ela quer ir ao final.
Rá-rá-rá, ró-ró-ró Ela quer ir al final Rá-rá-rá, ró-ró-ró Ela quer ir ao final
Essa estrofe é de minha autoria e quem quiser que cante outra.

Texto itálico = mente inconsciente e pré-consciente, Self 2, hemisfério direito do cérebro.

Texto sublinhado = mente consciente, Self 1, hemisfério esquerdo do cérebro.


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